Ana Cláudia Romano Ribeiro vem fazendo uma trajetória poética de explícito deslumbre com o mundo; nessa obra, cada coisa ínfima explode em secretas epifanias de sentido e não-sentido, que se aclaram num prazer sensorial de existir em meio a tanto bicho, planta, terra, gente, corpos e palavras. Isso não quer dizer que o projeto poético seja monolítico. Muito pelo contrário: quem já leu Ave, semente (2021) e A casa das pessoas (2023) certamente sabe que os poemas-ilustrações concisos e contemplativos do primeiro estão a uma distância imensa das vertigens subjetivobjetivas nas peças mais longas do segundo. Apesar de tudo se tocar, não seria diferente neste O fragmento 31 de Safo e outros poemas.
Aqui tudo parece emergir, desde o título, da experiência de leitura do fragmento 31 de Safo de Lesbos, como se o resto das obras gravitasse de modo algo desconexo. Não é o caso. Assim como Romano Ribeiro pega um mesmo fragmento para reescrever ritmicamente em estrofes sáficas brasileiras, traduzir livremente como poema próprio e depois encontrar jabuticabas ali, todo o livro vai descascando camadas da múltipla experiência de corpo e vida, entre o amor com Deise, o envelhecimento do pai e cada coisa sagrada do universo, que lemos em poemas como “tempo”: “deitar-se nos tijolos/sentir o limo úmido nas costas/ouvir insetos/deixar virem e irem embora cachorros e galinhas/olhar a copa das árvores/saber que os abacates estão quase maduros/e que as árvores perdem folhas o tempo todo/amadurecer nos intervalos”. E tudo aceita ainda outros desdobramentos imprevistos e tradutórios, como o “anu-preto”, que traduz “Blackbird” de Lennon & McCartney, numa variação impressionante de modos e tons.
Talvez por isso eu possa dizer que este livro está repleto de um caráter solar que, do seu jeito, não deixa de ser muito grego e abrasileirado a um só tempo. São seus modos possíveis de “colher o dia”, como termina um poema. E isso sem ingenuidade ou otimismo vazio, porque também depreende modos de colher a dor, em cenas inesperadas como esta: “um jacu manco salta de galho em galho/a pata quebrada não impede o voo/da primavera que começa//na dúvida da vida”.
É um livro maduro, provavelmente o mais forte dessa trajetória entre poemas e imagens, porque incorpora intenso e sem medo a movência no mundo e nos seres. Outro verso resume seu deslumbre maturado: “impressionante como o movimento faz florescer”. Bichos, plantas, gente: tudo que guarda seu tempo.
Guilherme Gontijo Flores