O cultivo das desmemórias

Disponibilidade: Brasil

já idosa
a madrasta devota do meu velho pai
não se cansava de dizer
que estava praticamente cega
mas fazia os crochês
mais delicados e miúdos
jamais vistos por quem quer que seja
e desapareceu nonagenária

em decorrência do alzheimer

ainda sob os cuidados dos enteados dela
mas vejam vocês
ninguém de casa sabia

naquela época

do que se tratava esse mal
todos ficavam surpresos

como nos surpreendemos
ainda hoje em dia

com aquela decadência acelerada
e falavam apenas
que ela tinha ficado caduca por causa da idade
pudera o estranhamento

R$62,00

_sobre este livro

Flávio Augusto constitui neste livro um eu poético que está no centro de uma dúvida existencial e, para ele, fulcral, conforme registra num poema: “nunca vou saber ao certo/ se/ fui/sou /ou algum dia serei// pelo menos de forma idealizada/ também um velho pai/ para os meus filhos”. Essa dúvida, marca da escrita poética, que recusa a certeza para não se tornar preleção, proporciona um efeito reflexivo que suscita mais consequências úteis para a experiência vital que a certeza comovida de uma oração. A vida está em movimento e transforma o ser na medida em que o atravessa pelo tempo que passa, daí a dúvida existencial que o coloca no centro e faz esse eu poético olhar para o passado, que reconhece por pensar tê-lo vivido, assim como, dialeticamente, olhar para o futuro, indagando, de forma idealizada, se o realizará como o modelo afetivo que buscou personificado em seu pai. Essa projeção remarcada nos poemas não é simplificada, circunscrevendo-se apenas a uma relação de ordem familiar, e nisso o livro ganha em potência ao transcendê-la: as vidas estão atravessadas pelos momentos históricos que as restringem, marcam, impedem, abalam. É possível ao leitor apreender que não apenas essas vidas e afetos sugeridos no livro estão aprisionados numa circularidade existencial de eterno retorno do mesmo, mas também a história, essa em que essas vidas estão imersas, num amálgama que o poema (como representação de todos os poemas e do livro) tenta transcender com a dúvida que move a poética por não haver resposta confortadora, pois, afinal, cada ser escapa de todo sentido e, tal como a poética, se move, em trânsito, para o encontro final.

Ademir Demarchi

_outras informações

isbn: 978-65-5900-813-1
idioma: português
encadernação: brochura
formato: 14x19,5 cm
páginas: 184 páginas
papel polén 90g
ano de edição: 2024
edição: 1ª

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