Eu ouço Ela cantarolar. Já ouvia antes d´Ela começar a caminhar. Ela era outra, ao mesmo tempo em que era ela mesma. A sua jornada, como de toda pessoa trans, não foi de si para o mundo, foi do cenário exterior para o seu próprio interior, descobrindo-se ao mesmo tempo em que se compunha. Atriz de sua peça, protagonista de sua vida.
Canções de outrora abafadas pelo barulho da contemporaneidade. Maria Lucas escutou as vozes ancestrais e contou a Ela, afetando-se-lhe.
A sagaz escritora confere a Ela uma capacidade ímpar de compreender o quanto de subalternizante pode haver em atos aparentemente gentis da cisnormatividade. Ela pergunta a quem a lê: quais são os limites da sua sororidade? Até que ponto não se resume a um gozo ante à dor alheia? O que significam “casa” e “família”? Por que o sofrimento afligido a esta corpa lhe importa menos do que a uma mulher cis? Por que você fala em amor mas a deseja apenas como objeto sexual?
Estas não são questões exóticas, são universais. A fábula fala de ti também, não importa a sua identidade de gênero, mas qual papel você encena? Gênero são óculos que foram colocados no rosto de todo mundo, mas poucos sabem que o usam.
Através de quais lentes você enxerga o seu próprio mundo? Um microscópio que nos reduz a bucetas e paus ou um telescópio que nos alcança nas constelações?
O fato de estar cercada de artistas de forma alguma a isola da transfobia ou lhe garante um abraço. Ela denuncia o sonho da oprimida em se tornar opressora, porque se sente melhor ao pisar na travesti, que considera menos mulher.
Mas Ela não é minúscula e Maria Lucas é uma estrela! Nestas páginas você não conhecerá um falso brilhante, há substância nestas linhas. Gritos de liberdade. Resposta amorosa ao mar de ódio que tenta nos afogar.
Ela não abaixa a cabeça para falsas acolhidas, parte da casa assassinada. O que lhe prepara o futuro? Este livro não responderá, Maria Lucas tem muito mais estória do que cabe na prosa. Evoé.
Jaqueline Gomes de Jesus