Uma mulher nasce antes de nascer. O mito da tábula rasa foi desfeito há muito. Um ser quando nasce não é um papel em branco, uma página a se escrever. Quando chegamos ao mundo, já há algo escrito em nós. Nosso corpo é esperado, sonhado, a imaginação antecede a pessoa.
E ao nascer Mulher?
Quando uma semente é brotada no colo de nossa mãe, a mãe nos entrega uma memória. Não apenas a sua, mas a daquelas que vieram antes, daquelas com quem conviveu, daquelas que nem conheceu. Não só a mãe, mas todos a sua volta, esperam e entregam.
No ato do nascimento, a palavra mulher, que antes se traduz como a palavra menina, é dada àquela que nasce e de algum modo a acompanhará por toda a vida.
“É preciso plantar para colher e eu fico aqui agarrada às minhas sementes”, Marina Sales Rodrigues se agarra às sementes, ao mesmo tempo em que as quer soltar, me pergunto se não é o mesmo que fazemos com as palavras ao escrever um livro. As agarramos na intenção mais profunda de que elas sejam lançadas e sigam seu próprio caminho. Assim, são as raízes que se fincam no solo e se nutrem da água para que possam emergir. São nas raízes, nas águas de sua própria história, que Marina nos coloca diante do acontecimento de se nascer Mulher.
Os capítulos “Útero”, “Aquário”, “Areia”, “Mar Afora” e “Oceano” percorrem o caminho do nascimento à fase adulta de uma mulher, trazendo historietas e percepções sobre sua própria vida. Do mesmo modo que a memória não é linear, o livro pode ser lido em qualquer tempo e em qualquer ordem, como um oráculo que nos acompanha no encontro e no acaso de quem lê. Cada texto é em si próprio, ao mesmo tempo que é cuidadosamente alinhado a um todo.
A metáfora da água que irriga o útero e chega ao oceano, em uma escrita poética e límpida, mostra o devir mulher. Nossos fluxos são diversos, temos em nós a singularidade, mas há uma semente que nos une. É essa gota, que espalha e nos acompanha por todo sempre, que é reconhecida em A palavra mata a coisa desta autora que estreia na literatura com consistência e delicadeza. Mulher. Palavra de encontro.
Isabelle Borges