REVISTA INTEMPESTIVA
LANÇAMENTO
INTEMPESTIVA 06
[ano 04, out. 2022, p. 124]
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editorial
É certo que o mundo material se impõe sobre nós. E sua materialidade não se limita apenas aos âmbitos da física ou da biologia, mas os extrapola e atinge em cheio a cultura e nossas formas de organização, seja social, econômica ou do pensamento. Assim, a fome e a concentração de riqueza, o fanatismo e a ideologia, a tirania e a guerra se impõe diretamente sobre os corpos, queiramos ou não.
No entanto, todas as relações humanas, inclusive aquelas que estabelecemos com o mundo estritamente físico, são mediadas, guiadas e compreendidas a partir do uso que fazemos da linguagem, em todas as suas manifestações. O horizonte possível de ações está diretamente ligado à capacidade de nomear e imaginar o mundo que criamos e que nos constitui. Daí se segue que cada época tenha seu conjunto específico de problemas e sua dose de utopia, num jogo e tensão entre aquilo que “está” e o que “pode ser”, com seus limites estabelecidos pelo que conseguimos compreender e o que somos capazes de dizer e sonhar.
Os fenômenos, não sendo totalmente apreendidos por si, são necessariamente compreendidos pela maneira com que somos capazes de narrá-los. Ao mudar as formas de dizer, mudamos também a forma de ver. A literatura se insere nessa questão como uma maneira de utilização da linguagem capaz de dar a ver. O erro comum, especialmente nos críticos, no entanto, é querer separar forma e conteúdo, como se fossem duas coisas distintas, quando, de fato, forma é conteúdo. O “experimentalismo”, tantas vezes criticado como antidemocrático e incompreensível (ou como um simples exercício da forma pela forma), é, na verdade, a tentativa de olhar sob outro ângulo, de encontrar a forma necessária para expressar uma intuição ou entendimento outro sobre nossa época, sobre nossa condição. Ou deveríamos imitar o mundo precisamente como ele se apresenta aos nossos olhos e esperar dizer algo que já não esteja nos manuais e nos jornais? Repetir a fórmula de sucesso interessa apenas a quem já detém o controle sobre a narrativa oficial do que se convencionou chamar de “possível”.
Entretanto, nem as coisas nem o sol é o mesmo, ainda que tudo se repita como farsa de si. Quanto a isso, o Eclesiastes está errado. E ainda que por vezes tudo pareça imóvel e inalterável, o planeta gira. Ainda que por vezes seja mais fácil acreditar no Apocalipse do que no fim do capitalismo, não houve império que não ruísse depois de chegar ao seu ápice. Afinal, não foi César esfaqueado? Luís XVI guilhotinado? Mussolini alvejado e apedrejado? – Muda-se a forma de exercício do poder, muda-se também a forma de combatê-lo. A literatura, ao não ser reduzida a um mero mecanismo combativo, torna-se capaz justamente de dizer o indizível, o que é silenciado – abre-se como um campo inesgotável a partir do qual conseguimos intuir algo insuspeito sobre nós: nossa própria miséria e nossos próprios sonhos.