Sapucay, livro de Giuseppe Memoli, é provocação. Chamamento para briga, contenda, peleja, luta, disputa. Embate que tem tantos nomes quanto o Diabo (Tinhoso, Capeta, o Ó), que instiga, favorece uma das partes e até cumpre justiça — às avessas, é claro — em um dos contos aqui recolhidos. E, quem sabe, esteja escondido nos detalhes de cada uma destas narrativas, porque os conflitos nunca faltam, apenas mudam os atores e o tom. Algumas vezes altivo, outras vezes, patético, um passado para o outro, a depender daqueles que se apresentam para o duelo.
Sapucay é saber navegar no breu, especialmente quando se sabe que tem algo errado com a água. Aqui, o narrador perde o seu lugar. Não que ele esteja ausente. Pelo contrário. O que falta é o lugar onde ele está ou por onde passou. Se ele informa que o acidente aconteceu na “paliçada de Colibrina”, em seguida acrescenta que essa cidade já não existe. Pode ser no Rio Grande do Sul, em qualquer lugar do estado e, conforme o causo avança, no mundo como um todo. Neste hostil quinhão, que se estende por onde quer que vá, o narrador continua seguindo em frente, buscando arrebatamentos, perdendo o seu chão.
Sapucay é música, acompanhado de acordeão ou rabeca. Por isso, único lugar definido para o contador de histórias é a sua própria história. Ele habita o seu contar, o seu canto, sua forma específica — mas nunca pura — de narrar. É de prosódia a prosódia que viaja a rapsódia das várias histórias deste livro.
Sapucay é pássaro desconhecido, de canto longo mas nunca visto, que voa apenas na imaginação daqueles que dele não se esquecem.
Sapucay é grito. Grito de alegria, choro, desafogo. Surge com os Mbay-Guarani, ecoa pela Missões, pelos gauchos, é verdade, mas ninguém sabe dizer de onde vem. Talvez de Yase Yateré, cujo nome significa “pedaço da lua”, guardião da erva-mate e protetor das sestas. As narrativas aqui apresentadas não se esquecem dessa história ou do esquecimento dessa história (diferente de alguns frequentadores de Centros de Tradições Gaúchas, os ctgs), especialmente quando contam a vingança dos Charrua ou os planos de Yamandú, personagem criador e guia da peça de encerramento do livro, amigo dos cavalos, um tanto desgostoso com Adão e seus comparsas, que se desinteressam por seus causos e lembranças.
E é esse mesmo Yamandú, o velho, que agora devemos ouvir, já que nos convoca: “Vamos. Já passou da hora de tocarmos”.
Tiago Guilherme Pinheiro