Em Faia, a iniciação no jogo da vida, cujas regras só se conhece jogando. Aqueles anos passados com vovó foram como uma era inteira de aprendizados sobre o mundo.
Nome do reino vegetal, em Faia germinam a imaginação, a prática da atenção, só atribuídas ao humano, reino animal. Pedra, para onde migra, é mineral. Separa-se para distinguir, mas é orquestra.
Entramos em Faia pelo aroma do qual o neto-narrador sente saudade. Vem da cozinha e, como uma presença, toma conta da casa. A avó, um abraço onde poderia morar para sempre, faz bolo com uma delicadeza que só devotos têm pelas divindades. Além do cheiro, falsa baunilha, chegam até ele ainda no sono o sino da igreja, o ruído da conversa com quem chega como se nada quisesse. Com bolo no fogo?
A casa é quase rua. O bom-dia desliza calçada adentro, feito um gato. O narrador é forjado como a avó constrói, uma a uma, flores de açúcar. Maneja o fazer e a aplicação do confeito. Artifício que finda no céu da boca, um dos paraísos no corpo, tão perto da língua; em Faia, treinada como um cão. Passeio, caça. Doméstica e devastadora como uma faca. Fogo.
Faia, a palavra, diz do comer. Alimentar-se. Em tipografia, diz das entrelinhas. Pedra, a derradeira coisa que nos sugere é poro, condição que faz dela aquilo que é, em um tempo que nos antecede e ultrapassa.
É esperado e efêmero acontecimento, feito luzir de vagalume, voltar da escola, em Faia, na garupa da bicicleta do avô e ver o próprio rosto à passagem dos pneus na poça d´água (espelho!). A cidade estação de trem lhe traz as primeiras sensações e palavras. Os sentidos, vai seguir elaborando-os. Em Pedra, tudo que é, canta. A ariramba-de-cauda-ruiva, o rio Itaytera, a chapada antes fundo de mar.
De Adélia de Casimiro, em Faia, dessas visitas que só vão embora quando arrancam alguma coisa da gente, ao duo Odile e Odete, em Pedra, que sabe vislumbrar, em uma lasca de xícara de vidro, uma estrela enterrada, “nomes de terra” conta a descoberta do mundo, grandeza incalculável não só para um menino, e sua invenção pela linguagem.
Um livro de formação. Leitor das mil e uma noites de Sheherazade que a avó conta de ouvir no rádio, dos silêncios do avô ao crepúsculo, do espanto no cotidiano — bonito e perverso, o narrador enlaça Pedra e Faia como notas musicais em uma sonata. O terceiro movimento é o da leitura.
Reli. Livro de viagem, caderno de campo de caminhante, diário de um artesão de si. Imparável leitura.
Izabel Gurgel