Muitas coisas me diz uma nódoa; tantas e tão peculiares que posso, liberto da marcação do relógio, confabular com meus pensamentos intranquilos a respeito dela, por um tempo alongado. O que vi em minhas andanças no encalço daquelas pessoas, capturadas pela escritora habitante de Morada Velha, foram nódoas indeléveis. Cada uma dessas criaturas — predominantemente mulheres — têm corpo e alma marcados como se fossem, estes, meros tecidos, estampas à mercê de um desenho intruso, que se intromete na cor do pano, infecta sua feitura, infiltra-se em seus fios e passa inexoravelmente a fazer parte da estrutura daquela veste. Mimetiza-se, incorpora a nódoa. A compulsão pela roupa quarada, esfregada, lavada; o afã de enterrar a cabeça pescoço adentro, sepultando-a sob o peso de incontáveis latas d’água; ter de aguar flores e frutos; obrigar-se na umidificação da vida que persevera seca (tudo) agrupa-as num estigma. Ceifadas por tão cruel gestual, entontecidas por turvos pensamentos, velarão o próprio corpo murcho, desfiarão todas as contas do rosário na intenção de um espírito exangue e, ocupadas, nem se dão conta de que o castigo foi aceito por elas; cumprem-no como se Sísifos fossem, empurram sua pedra penitencial montanha acima, apenas para vê-la rolar montanha abaixo, condenadas que foram à execução de um trabalho extenuante e improfícuo. Mas Sísifo cresce, volta a ser Sísifo, a ter sede de si mesmo, dentro dos acanhados minutos em que desce para tornar a subir, Sísifo, senhor desse tempo ínfimo, pensa; diz-nos Camus. Essas mulheres daqui negam-se ao próprio pensar, desperdiçam esses pingos de tempo, em favor da pedra, pela pedra. Dão-se à secura indizível e constroem uma solidão inimiga. Derrotar lonjuras, no entanto, ainda é preciso, aqui e acolá, vencendo-as, abrindo caminhos propícios aos grãos desabitados de gorgulhos, por certo seu homem e sua prole apreciarão. Chegará o tempo imponderável, aquele, do respeito, da devoção à perenidade da nódoa; será providencial que ela, a nódoa, persista, desta forma, à medida que for cautelosamente esfregada, poderá dizer-lhes onde, de que fato, em que esconderijo nasceu. É bom tocar a pedra ladeira acima, ainda mais ocupar-se no rolar da pedra ladeira abaixo; garantir a excelência do cumprimento do castigo. Daí, mesmo quando acontecer de partirem, não partirão deveras, essas nossas mulheres. Lá fora, carregarão Morada Velha às costas.
Rejane Gonçalves