Lembro-me da primeira vez que li os poemas de Emily Dickinson e fiquei embasbacada com sua capacidade de olhar a natureza tão de perto, sem nos poupar da dor e do sentido erótico que essa observação implica.
Para Dickinson, falar de violetas existindo no jardim e enxames de abelhas era também falar de membros amputados, cabeças com o tampo aberto, pequenos pedaços de madeira enfiados como estaca no coração. Falar sobre o que se vê é também falar do que está dentro do que se vê. A possível observação da natureza como um espelho do próprio organismo.
O Atlas da Anatomia Imaginada é a exposição de uma maldição. Ver o que tem dentro está longe de ser pacífico, dizia Dickinson. Dentro é confusão, é mirar a ânsia brutal, é sexo desgovernado entre todas as células, manifestar a angústia de finalmente dar palavras àquilo de que somos feitos. Olhar dentro é também nomear o sadismo iminente que toca o ato de imaginar e a consequência passional de escrever.
A poesia de Luísa atinge como pequenas agulhas, como chaves de fenda, como línguas úmidas confundindo, machucando e exorcisando o amontoado de imagens que engolimos todos os dias, todos os anos, todos os séculos. O atlas do(s) corpo(s) de Luísa é feito de muitas muitas palavras, são as palavras que estão nessa mesa de anatomia. Cada capítulo é um novo corte nas carnes das palavras, para chegar, talvez mais fundo, do outro lado.
Não se deixe enganar pela aparência lúdica que pode ter o ato de “imaginar uma outra anatomia humana”. Aqui, fabular o corpo é a saída para poder seguir vivendo. E não existe vida sem imaginar freneticamente. O apocalipse das palavras não pode ser o apocalipse do corpo, então a anatomia de Luísa é uma luta. Lançar palavras como facas, morder glóbulos como uvas, respirar pelos dentes para poder atestar que o desejo continua. Mesmo quando tudo parece a mais pura ruína. O desejo de imaginar deixa tudo vivo, muito vivo. Escrever é continuar desejando. Mas toda essa intensidade não significa a ausência de humor. Luísa nos lembra muitas vezes o quão risíveis são as hordas de palavras amontoadas na viscosidade da matéria.
À medida que avançamos nessa especulação do corpo e da palavra, parecemos desaprender certos sentidos hegemônicos do vocabulário, como se precisássemos reaprender a falar. Nesse processo, novos contornos para a expressão aparecem. Dentro do fundo desse organismo novo e assustador, cuspindo novas velhas palavras, em ordens trocadas, uma outra possibilidade para se começar a falar de amor.
Carolina Bianchi