Talvez os versos demorem a fazer ricochete. Emudece-nos a sua nudez que, enquanto acontece, não nos deixa desviar o olhar. Nada temos a acrescentar. Ficamos apenas esperançosos pela coincidência feliz de alguém, carregado de outras vivências, mais ou menos duras, leia as mesmas palavras e delas saiba extrair o que lhe tocar.
Peter Handke, autor do Poema Duração, disse numa entrevista qualquer que “há uma idade para a poesia: tem de se ser muito novo e, depois, tem de se esperar… pela sabedoria e intensidade e tristeza e alegria, tudo junto”. E, depois, que a “poesia precisa não só de inocência, mas talvez de culpa e de inocência”, de ambas. Nada percebo de poesia e menos ainda de que precisará ela, abomino fórmulas (embora seja sensível a preocupações formais) e tampouco creio em idades certas para se fazer algo.
Comove-me ainda sentir o calor ou a dor por intermédio das palavras de alguém que nos dá o pulso a medir a temperatura. Temperatura essa normalmente não correspondente entre corpo e voz. Então, ao arriscado ofício de traduzir dor e beleza, seja a “tua”, da rua, ou das trevas potentes, desejo o melhor passeio que nos vai sendo calcetado à medida da leitura. Brassalano Graça intriga aqueles que pisam, ainda que de leve, as suas palavras. Sejam poéticas-radiofónicas, pela atenção e vibração que confere aos outros, pela delicadeza com que chega ao trabalho do outro, seja poéticas-escrita, desde um Facebook surpresa ao livro Súbito.
Intuo que a sua incursão na poesia em livro afasta-se do poema perfeito, que enferma algumas mentes adeptas de virtuosismos apoucados. Ferreira Gullar, autor de Poema Sujo, defende mesmo “que não existe poesia pura. A poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral.”
A poesia de Brassalano Graça poderá ser a farinha do moinho que há anos lhe arde no peito. O lançar das cartas comprometedoras para todo o jogo. Uma poesia sensorial, entre coxas, orvalho, declive da pele, amores, carnes e música fúnebre do futuro. Onde as noites pesam de insónia e chumbo, e as lágrimas são de luz. Embora tudo esteja sobejamente adjectivado para dar saltos não estridentes de sentido, a composição não arrebata a espontaneidade. Nestes versos parece que nunca se sai de uma imagem que está sempre a abrir para novas imagens, átomos em choque, que nos vão povoando, produzem combustões — amor e conflito — é o que faz andar, creio.
Memórias antigas de cadáver da humanidade – de onde veio? qual o propósito? Unha de arranhar por dentro, extravasando os dias ponderados e fazer-nos cúmplices da sua inquietação. Uma poesia que é dança glacial de seres erráticos, que logo se derretem como barcos afundados. Uma poesia que permite inventariar possibilidades, amores, retornos a um nós mesmo com a única casa que realmente temos: esta nossa acumulação existencial. Uma poesia que convida a entrar em novas paisagens à boleia de nuvens prateadas, para chegar a cidades suspensas num domingo eterno.
Não sei se os seus poemas devidamente respiram, ou se se penduram na vertigem de brevidade, na atenção às pequenas coisas. Nada têm a ver com a atualidade, mas com as cidades libertárias, onde o jazz ecoa e a literatura acrescenta pormenores videntes. No seu poema encontro o que há “de sobrevivente no mais inóspito da realidade, no mais fundo da linguagem”. Mas não sei onde o poeta repousa a cabeça, se é que repousa, esse “clássico de dentes grandes, tortos e manchados por fumo e café”, esse “nervo desvitalizado do dente canino da civilização”. Brassalano oferenda-nos temores e deleitamentos, comparece nesta casa imunda e eternamente desarrumada que pode ser a poesia.
Marta Lança
tradutora e editora