De onde alcança a lembrança, nenhuma cultura nos gestos fundados de esperança, alegria, amor e pensamento existiu senão para reatualizar a experiência da queda. A calva luz que nos resta.
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_sobre este livro
Qual o lugar da sensibilidade estética na fatura do mundo numa época em que quase tudo o que chamamos de arte está convenientemente afastado do cotidiano da vida? Se já faz algum tempo que essa pergunta tem ocupado a poesia de Dyl Pires, é em Última carta na manga da cantora careca que ele retira as consequências que hoje o levaram a interromper a atividade escrita. “Toda crise artística é uma crise biográfica”, diz um dos versos mais testemunhais deste livro. O poeta marcou no peito as fissuras da delicadeza que estão estampadas nos pequenos e grandes gestos de violência nos quais se cancela o futuro por indiferença e preguiça. Coisas que acontecem entre as pessoas na hora de comprar o pão e também nos olhos dos mendigos. Nos termos do autor: “ninguém quer saber de ouvir o canto do bode/que necessariamente deveria vir do matadouro silencioso do coração”.
Esse bode esquecido é o animal grego que possibilitava, num rito de embriaguez e dissolução coletiva do eu, a criação mítica de um espaço para a representação que começa no próprio corpo. Com efeito, neste livro, as diferentes inflexões sobre o teatro que encontramos em vários poemas abordam a impotência da arte contemporânea para reinaugurar o ego como o bicho a ser sacrificado. E não é falta da técnica correta, do elenco preparado, dos editais, da bibliografia especializada. Muito pelo contrário… É o fato de que toda essa engrenagem não altera coisa alguma além do miúdo quintal do cânone e seus arredores. Dyl sempre relembra com alegria uma frase do Cazuza: “Cada disco do Caetano transforma minha vida”. E quem hoje vai a uma peça, ouve música, lê um livro para se tornar uma outra pessoa? A própria fruição artística se torna cada vez mais privativa e incapaz de desafiar o gosto pessoal e cômodo de nossas playlists. O jovem mudo, desatento, sem olhar para o entorno, com a escuta enterrada num fone de ouvido, é uma das imagens mais acabadas do público artístico de nossos dias.
“Não chamarei atores para reencenar o mundo no tempo do fim”, diz o poeta cujo silêncio de agora nos provoca a pensar se vale a pena convocar versos e palavras para uma encenação dessa natureza. Eu não sei dizer. Mas, na mudez dos seus olhos escancarados para a vida, impossível não notar as sementes dentro da videira.
Matheus Gato
_outras informações
isbn: 978-65-5900-234-4
idioma: português
encadernação: brochura
formato: 14x19,5cm
páginas: 56 páginas
papel polén gold 90g
ano de edição: 2022
edição: 1ª